“A ordem de grandeza em que se coloca o ponto limite crítico da velocidade é demasiado baixa para ser levada a sério pelo utente e demasiado alta para afectar o camponês. Deste modo situa-se para ambos no ponto cego do seu campo visual. Ao camponês parecer-lhe-ia voar como um pássaro se pudesse trasladar-se de casa para um campo a 25 km de distância numa hora ou em menos, enquanto que o utente esquece que a enorme maioria dos habitantes de Londres, Paris, Nova York e Tóquio empregam mais de uma hora por cada 10 km de deslocação. O facto de a velocidade crítica para a circulação estar situada no ponto cego comum ao campo visual do utente e do camponês é o que torna tão difícil apresentar o assunto à discussão pública. O utente está intoxicado pelo consumo de altas doses de energia industrial e toca-se-lhe num nervo vivo ao tocar o ponto, enquanto que o camponês não vê razão para se defender de algo que desconhece.
A esta dificuladde geral para politizar o assunto das velocidades acresce outro obstáculo ainda mais evidente. O utente dos transportes não é apenas cliente das estradas. É quase sempre um homem moderno, o que quer dizer que também é cliente vinculado a outros sistemas públicos, tais como a escola, o hospital e o sindicato. Está condicionado a acreditar que só os especialistas podem compreender o porquê das ‘características técnicas’ segundo as quais os sistemas funcionam: só o médico lhe pode identificar e curar a febre, e só o professor diplomado lhe sabe ensinar o filho a ler. Está também acostumado a confiar nos especialistas e em que só eles compreendar por que é que o comboio suburbano parte às 8.15 e às 8.41, ou por que é que os automóveis se têm de tornar cada vez mais complexos e caros sem que para ele melhore a circulação. A ideia de que por um processo político se poderia encontrar uma característica técnica tão elementar como a ‘velocidade crítica’, aqui em estudo, parece-lhe fruto da imaginação ingénua de um avô, de um inculto, de um luddita ou de um demagogo irresponsável. O seu respeito pelo especialista que não conhece transformou-se em cega submissão às condições por aquele estabelecidas. A mistificação própria e típica do homem-cliente é o segundo obstáculo para o controle popular da circulação.
Existe um terceiro obstáculo à construção da circulação: tal reconstrução por iniciativa maioritária é potencialmente um exclusivo social. Se num só campo maior as massas chegassem a entender até que ponto foram fantoches de uma ilusão tecnológica, a mesma mutação de consciência poderia facilmente estender-se a outros campos. Se fosse possível identificar publicamente o valor natural máximo para as velocidades veiculares, como condição para o trânsito óptimo, seriam então muito mais fáceis análogas intervenções públicas na tecnostrutura. A estrutura institucional total está tão integrada, tão tensa e frágil, que a partir de qualquer ponto crítico se pode produzir um despenhamento. Se o problema do trânsito se pudesse resolver por meio de intervenção popular e sem referência ao especialista no campo do transporte, poder-se-ia então aplicar o mesmo tratamento aos problemas da educação, da saúde, do urbanismo e até das igrejas e dos partidos. Se, para todos os efeitos e sem ajuda de especialistas, os limites críticos de velocidade fossem determinados por assembleias representativas do povo, atingir-se-iam então as próprias bases do sistema político. Deste modo, a investigação que proponho é fundamentalmente política e subversiva.”
Ivan Illich, “Energia e Equidade” (dezembro/1973), página 67 na tradução da Editora Sá de Costa (1ª edição, Portugal, 1975)