Lá por volta de 2007, na época em que saiu, assisti À Procura da Felicidade (The Pursuit of Happyness) em Santa Catarina. Na ocasião, minha impressão sobre o filme não foi boa e, com efeito, na minha memória não restava nada de positivo sobre ele. Me incomodou muito a mensagem do roteiro, algo como “não importa quão ferrado você está; se esforçando e acreditando nos seus sonhos você só depende de você para subir na vida”.
Inspirado pela ideia de assistir filmes que se passam em San Francisco e particularmente por ter visto um cartaz de um músico de rua na Chinatown dizendo que ele apareceu no filme, resolvi encará-lo novamente na semana passada. Dessa vez, achei tão brilhante que me vejo obrigado a escrever esta nota, que quero compartilhar com meus amigos no Brasil, para recomendá-lo.
“À Procura da Felicidade”, para muito além dessa mensagem e das belas imagens, e embora se passe na década de 80, é um fantástico retrato de uma característica muito atual da San Francisco que estou conhecendo nas oportunidades que tenho de visitá-la: uma cidade de sem-tetos, cada um por si à procura da sua felicidade. Não se trata de um problema só de San Francisco (alguém poderia argumentar que as pessoas vivem na rua lá porque é a cidade dos hippies — if you’re going to San Francisco, be sure to wear some flowers in your hair), mas de um problema que salta aos olhos nas grandes cidades dos Estados Unidos (em especial na Califórnia) e que neste país, onde a realidade dos 99% dificilmente tem dinheiro pra passar na TV, parece não ser muito divulgado e muito menos combatido da forma que deveria.
Em um estudo realizado com dados de 2005 e 2006, concluiu-se que todo ano uma a cada cinquenta crianças dos Estados Unidos encara não ter casa. Já seria absurdo, mas esse número hoje (pós-crise) é com certeza bem maior, já que várias pessoas têm perdido suas casas desde 2008. Camaradas que conheci da ISO do norte da Califórnia, que são ativistas em movimentos de moradia por aqui, estimam que 50 milhões (i.e., 1/6 de uma população de cerca de 300 milhões) já passaram pela experiência de ficarem sem teto.
Diferente de como funcionam as coisas no nosso país, aqui o governo não permite construções irregulares (tipo as nossas favelas). Como resultado, o que vemos é algumas pessoas vivendo em abrigos, algumas revezando casas de amigos, algumas nos seus carros, algumas acampadas (principalmente pós-2008), muitas nas prisões (0.7% da população dos Estados Unidos está presa neste momento e o número quadruplica se você considerar liberdades condicionais e pessoas em observação: é o recorde mundial) e muitas simplesmente nas ruas mesmo. Os abrigos são muito insuficientes para a quantidade de pessoas sem teto: em San Francisco, há uma vaga para cada quinze pessoas sem lugar para morar. Na maioria dos lugares, é preciso conquistar diariamente uma vaga.
Estou numa tentativa de falar com o máximo de pessoas que consigo para aprender sobre essa gente. Esses dias, pegando um trem, puxei conversa com um homem muito sujo, com sotaque muito engraçado (para mim) e com uma mochila, negro, velho, não me lembro o nome. Acho que ele gostou de mim: repetiu várias vezes que eu era louco, mas foi me contando várias coisas. Depois de trocarmos ideias descobri que era veterano do Vietnã. Falei pra ele que eu queria conhecer Oakland. Ele respondeu pra eu não ir, porque, nas suas palavras, “é uma cidade muito perigosa: muitos negros e sem-teto. Há muitos sem-teto aqui. Você não vê todos porque eles se escondem para não serem presos e você nem percebe que um é quando conversa com ele. Você com essa barba poderia ser um.”.
Sem entrar na discussão sobre outros problemas latentes como o racismo e a segregação, a falta de saúde, a falta de qualidade e o alto preço da educação, e a inércia dos que ainda acreditam no sonho americano e buscam [com necessidade e razão, mas usualmente em vão] individualmente a felicidade diante disso tudo, para não escrever um texto muito grande quero registrar apenas que estou há quase um mês e meio aqui e ainda me impressiono: é incrível o nível de desigualdade e de desumanidade que noto a cada minuto no país-modelo do capitalismo e na região do tão rico e inovador Vale do Silício.
A minha ideia, antes de vir pra cá, era que aqui as pessoas tivessem mais condições, que houvesse mais acesso a qualquer coisa que não só fast-food e gadgets de segunda linha: afinal, me parecia que o ganancioso capitalismo estadounidense já explora suficientemente o terceiro mundo. De fato, há muitas coisas bonitas e muito dinheiro aqui. No entanto, o dinheiro é muito concentrado e neste momento não acho que a vida dos 99% aqui seja tão melhor do que a vida dos 99% na América Latina. Talvez pela crise, pelo poder da propaganda, pelo individualismo ao qual são levados pela fé num sistema que os explora sem parar, pela aparente dificuldade de luta organizada e pela ausência de organizações de esquerda com influência de massas na história recente, seja o contrário. De qualquer forma, cada vez tenho mais certeza de que aqui e aí temos, entre outras coisas, um grande desafio em comum. A construção de outro futuro, que reinvente as relações humanas, no qual tenhamos igualdade e democracia de verdade é uma necessidade urgente e internacional.
Publicado originalmente no Juntos.