“Dado o seu impacto geográfico, a indústria do transporte modela, em definitivo, uma nova espécie de homens: os utentes. O utente vive num mundo alheio ao das pessoas dotadas da autonomia dos seus membros. O utente tem consciência da exasperante penúria de tempo provocada pela corrida quotidiana ao comboio, ao automóvel, ao metro, ao ascensor, que o transportam diariamente através dos mesmos canais e túneis num raio de 10 km a 25 km. Conhece os atalhos encontrados pelos privilegiados para escaparem ao exaspero engendrado pela circulação e que os conduzem aonde querem chegar, enquanto ele, o utente, tem que conduzir o seu próprio veículo de um lugar, onde preferiria não viver, para um emprego que preferiria evitar. O utente sabe-se limitado pelos horários dos comboios e autocarros, nas horas em que a sua mulher o priva do automóvel, mas vê os “executivos” deslocarem-se e viajarem pelo mundo quando e como muito bem lhes apetece. Paga o seu automóvel com dinheiro do seu bolso, num mundo onde os privilégios cabem ao pessoal dirigente das grandes firmas, universidades, sindicatos e partidos. Os pobres amarram-se ao seu carro, e os ricos utilizam o automóvel de serviço ou alugam-no à Hertz. O utente exaspera-se com a crescente desigualdade, a escassez de tempo e a sua própria impotência, mas, insensatamente, põe a sua única esperança em mais da mesma coisa: mais circulação por meio de mais transporte. Espera o alívio através de modificações de ordem técnica que hão-de afetar a concepção dos veículos, das estradas ou da regulamentação do trânsito. Ou então espera uma revolução que transfira a propriedade dos veículos para a coletividade e que, por meio de descontos nos salários, mantenha uma rede de transportes gratuitos, cujas seções mais velozes e caras serão outra vez apenas acessíveis àqueles a quem a sociedade considere mais importantes. Quase todos os projetos de reforma dos transportes que se supõem radicais padecem deste prejuízo: esquece-se o custo em tempo humano que resultaria da substituição do atual sistema por outro, mais “público”, se este último for tão rápido como o outro.
À noite o utente sonha com aquilo que os engenheiros lhe sugerem durante o dia através da televisão e das colunas pseudocientíficas dos jornais. Sonha com redes estratificadas de veículos de diferentes velocidades que convergem em interseções onde as pessoas podem encontrar-se nos espaços que lhes são concedidos pelas máquinas. Sonha com os serviços especiais da “Rede de Transportes” que dele se encarregarão definitivamente.
O utente não pode captar a demência inerente ao sistema de circulação baseado principalmente no transporte. A sua percepção da relação do espaço e do tempo tem sido objeto de uma distorção industrial. Perdeu a capacidade de se conceber como outra coisa que não seja um utente. Intoxicado pelo transporte, perdeu consciência dos poderes físicos, sociais e psíquicos de que o homem dispõe, graças aos seus pés. Esquece que o território é o homem que o cria com o seu corpo e toma por território aquilo que não passa de uma paisagem vista através de uma janela por um homem amarrado ao seu banco. Já não sabe marcar o âmbito dos seus domínios com o rasto do seus passos, nem encontrar-se com os vizinhos, passeando na praça. Já não se encontra com outro sem chocar, nem chega sem que um motor o arraste. A sua órbita pontual e diária alheia-o de todo o território livre.
Atravessando-o a pé o homem transforma o espaço geográfico em morada por ele dominada. Dentro de certos limites, a energia que aplica para se movimentar determina a sua mobilidade e a sua capacidade de domínio. A relação para com o espaço do utente de transportes é determinada por uma força física alheia ao seu próprio ser biológico. O motor mediatiza a sua relação com o meio ambiente e depressa o aliena de tal modo que depende do motor para definir o seu poder político. Ele que está condicionado a crer que com eles aumenta a capacidade dos membros de uma sociedade para participarem no processo político.
Nas suas reivindicações políticas o utente já não pede caminhos abertos, mas sim mais veículos que o transportem; quer mais daquilo mesmo que agora o frustra, em vez de pedir a garantia de que, em todos os sentidos, a prioridade caiba sempre ao peão. A libertação do utente consiste na sua compreensão de realidade: enquanto exigir mais energia para propulsionar com mais aceleração alguns indivíduos da sociedade, precipita a corrupção irreversível da equidade, do tempo livre e da autonomia pessoal. O progresso com que sonha não é mais do que a destruição melhor conseguida.”
Ivan Illich, “Energia e Equidade” (dezembro/1973), página 40 na tradução da Editora Sá de Costa (1ª edição, Portugal, 1975)
E com isso vou parar de copiá-lo, antes que copie o livro inteiro, que é excelente. Recomendo a quem se interessar que procure em bibliotecas ou em sebos.