O encontro histórico de Stallman e Assange

Richard Stallman é um dos hackers mais importantes da história. Quando era estudante de doutorado em Ciência da Computação no MIT, viveu a transição dos dias em que todos os programas eram abertos para os dias em que as ideias computacionais se tornaram privatizáveis através do modelo do sofware proprietário.

Ao perceber que não tinha mais o direito de mexer no código da sua impressora para fazer ela funcionar como ele gostaria, nem poderia compartilhar os programas que gostava com seus amigos, o americano ficou preocupado com o que poderia ser a computação no futuro se esse modelo fosse o único. Não quis ser conivente. Imediatamente largou o doutorado, escreveu o sistema operacional GNU (os aplicativos que compõem o que é injustamente chamado somente de Linux e são usados na grande maioria dos grandes servidores do planeta) e lançou o GNU Manifesto, que deu origem ao software livre.

No final de 1985, Stallman fundou a Free Software Foundation (FSF) e pelos últimos quase 30 anos escreveu e viajou o mundo para divulgar o software livre e combater patentes de software, DRM e outros sistemas técnicos e legais que ameaçam a liberdade dos usuários de computador.


Julian Assange tornou-se o inimigo número 1 do imperialismo ao divulgar, através do WikiLeaks, informações que os grandes capitalistas não queriam ver divulgadas. Alguns exemplos são a explicação de mortes de civis no Iraque (incluindo o conhecido vídeo Collateral Murder, que mostra o ataque de dois helicópteros americanos a um grupo de civis em Bagdá e inclui a morte de dois jornalistas da Reuters e duas crianças), negócios diplomáticos e esquemas de corrupção envolvendo governos, bancos e grandes empresas.

O australiano encontra-se refugiado na Embaixada do Equador em Londres há mais de 1 ano. Se sair do conjunto de salas onde vive, no terceiro andar de um pequeno prédio, será imediatamente preso pela polícia britânica e extraditado para a Suécia, de onde pode ser enviado aos EUA. A situação não o fez parar de lutar. O WikiLeaks segue publicando e Assange acaba de criar o Partido WikiLeaks, na Austrália, pelo qual ele será candidato a senador nas eleições em setembro.

Além disso, lançou no final do ano passado o livro Cypherpunks (com Jacob Appelbaum, Jeremie Zimmermann e Andy Muller-Magoon), no qual discute a liberdade e o futuro da internet. O livro tem tudo a ver com os vazamentos de Edward Snowden e com a luta da qual Richard Stallman foi símbolo durante toda a sua vida. Num texto publicado há poucos dias no jornal The Guardian (que encontra-se traduzido aqui), ele fala sobre como a criptografia e o software livre são importantes na luta anti-imperialista.


O perfil do WikiLeaks no Twitter divulgou nesta madrugada que Richard Stallman e Julian Assange se encontraram ontem a noite para discutir a campanha pela liberdade de Edward Snowden e Bradley Manning.

Há uma tentativa constante de cooptar o movimento do software livre e separá-lo de outras lutas por liberdades fundamentais. Certa vez, ouvi de um ativista pelo software livre confrontado por perguntas sobre o mundo contínuo (aquele que indignou Pitágoras porque não cabe nem em infinitos bytes) que “sua luta é só para o software ser livre, não para todas as coisas”.

Por isso o encontro de Assange com Stallman é tão importante. Mais do que o encontro de dois homens, simboliza o encontro de movimentos com ideias que combinam e são fundamentais para construir outro mundo, mais livre e mais igualitário, que depende de ativistas hackers e não-hackers para se tornar real. É tempo de nos juntarmos e atuarmos em todas as frentes.

Richard Stallman e Julian Assange

Como a criptografia é uma arma fundamental na luta contra os estados do império

O que começou como um meio de manter a liberdade individual pode agora ser usado por estados menores para afastar as ambições dos maiores.

Julian Assange, The Guardian (tradução: Tiago Madeira)

Os cypherpunks originais eram em maioria libertários californianos. Eu era de uma tradição diferente, mas nós todos procurávamos proteger a liberdade individual da tirania do estado. Criptografia era nossa arma secreta. Foi esquecido quão subversivo isso era. A criptografia era então propriedade exclusiva dos estados, para utilização nas suas várias guerras. Escrevendo nosso próprio software e disseminando-o por toda parte nós libertamos a criptografia, a democratizamos e a espalhamos através das fronteiras da nova internet.

A repressão resultante, sob várias leis de “tráfico de armas”, falhou. A criptografia se tornou padronizada nos navegadores e em outros programas que as pessoas agora usam cotidianamente. Criptografia forte é uma ferramenta vital na luta contra a opressão do estado. Essa é a mensagem no meu livro, Cypherpunks. Mas o movimento pela disponibilidade universal da criptografia forte deve ser feito para fazer mais que isso. Nosso futuro não depende da liberdade de indivíduos sozinhos.

Nosso trabalho no WikiLeaks dá uma profunda compreensão da dinâmica da ordem internacional e da lógica do império. Durante a ascensão do WikiLeaks, vimos evidências de pequenos países intimidados e dominados por maiores ou infiltrados por empresas estrangeiras e influenciados para agirem contra eles mesmos. Vimos expressões da vontade popular negada, eleições compradas e vendidas, e as riquezas de países como a Quênia sendo roubadas e leiloadas a plutocratas em Londres e Nova Iorque.

A luta pela autodeterminação latinoamericana é importante para muito mais pessoas do que as que vivem na América Latina, porque ela mostra ao resto do mundo que isso pode ser feito. Mas a independência da América Latina ainda está engatinhando. Tentativas de subversão de democracia latinoamericana ainda estão acontecendo, incluindo mais recentemente Honduras, Haiti, Equador e Venezuela.

Por isso a mensagem dos cypherpunks é de especial importância para audiências latinoamericanas. A vigilância em massa não é uma questão somente para a democracia e a governabilidade — é uma questão geopolítica. A vigilância de uma população inteira por uma potência estrangeira naturalmente ameaça a soberania. Intervenção após intervenção nos assuntos da democracia latinoamericana nos ensinaram a sermos realistas. Nós sabemos que as velhas potências ainda vão explorar qualquer vantagem para atrasar ou suprimir a eclosão da independência da América Latina.

Considere geografia simples. Todo mundo sabe que os recursos do petróleo dirigem a geopolítica global. O fluxo de petróleo determina quem é dominante, quem é invadido e quem está condenado ao ostracismo por parte da comunidade global. Controle físico mesmo sobre um segmento de um oleoduto produz uma grande potência geopolítica. Governos nessa posição podem extrair enormes concessões. Numa tacada, o Kremlin pode sentenciar a Europa oriental e a Alemanha a um inverno sem aquecimento. E mesmo a perspectiva do Tehran controlar um oleoduto ao leste para Índia e China é um pretexto para a lógica bélica de Washington.

Porém, o novo grande jogo não é a guerra por tubulações de petróleo. É a guerra por tubulações de informação: o controle sobre os caminhos de cabos de fibra óptica que se espalham por via submarina e terrestre. O novo tesouro global é o controle sobre os fluxos de dados gigantes que conectam continentes e civilizações inteiras, ligando as comunicações de bilhões de pessoas e organizações.

Não é segredo que, na internet e no telefone, todas as estradas que saem e chegam na América Latina passam pelos Estados Unidos. A infraestrutura da Internet direciona 99% do tráfego para e da América do Sul sobre cabos de fibra óptica que atravessam fisicamente as fronteiras dos EUA. O governo dos EUA não mostrou nenhum escrúpulo sobre quebrar a sua própria lei ao explorar esses cabos e espionar seus próprios cidadãos. Não existem tais leis contra espionar cidadãos estrangeiros. Todos os dias, centenas de milhões de mensagens de todo o continente latinoamericano são devoradas por agências de espionagem estadounidenses, e guardadas para sempre em galpões do tamanho de pequenas cidades. Os fatos geopolíticos sobre a infraestrutura da internet, logo, tem consequências para a independência e para a soberania da América Latina.

O problema também transcende a geografia. Muitos governos e militares latinoamericanos protegem seus segredos com hardware criptográfico. Isso são caixas e programas que embaralham as mensagens e então desembaralham-as na outra extremidade. Os governos as compram para manter seus segredos em segredo — frequentemente com grandes despesas para o povo — porque eles estão corretamente preocupados com a interceptação das suas comunicações.

Mas as empresas que vendem esses dispositivos caros desfrutam de laços estreitos com a comunidade da inteligência dos EUA. Seus presidentes e altos funcionários são frequentemente matemáticos e engenheiros da NSA (Agência de Segurança Nacional dos EUA) capitalizando nas invenções que eles criaram para o estado de vigilância. Seus dispositivos são muitas vezes deliberadamente quebrados: quebrados com um propósito. Não importa quem está usando ou como eles são usados — agências dos EUA ainda podem desembaralhar o sinal e ler as mensagens.

Esses dispositivos são vendidos para os países da América Latina e de outros lugares como uma forma de proteger seus segredos, mas são na verdade uma forma de roubar seus segredos.

Enquanto isso, os Estados Unidos estão acelerando a próxima grande corrida armamentista. As descobertas do vírus Stuxnet — e então dos vírus Duqu e Flame — anunciam uma nova era de armas-programas altamente complexas feitas por estados poderosos para atacar estados mais fracos. Seu primeiro ataque agressivo contra o Irã está determinado a minar os esforços iranianos de soberania nacional, um prospecto que é um anátema para os interesses dos Estados Unidos e de Israel na região.

Houve um tempo que o uso de vírus de computador como armas ofensivas era enredo de romances de ficção científica. Agora se tornou uma realidade global estimulado pelo comportamento irresponsável do governo de Barack Obama em violação ao direito internacional. Outros estados vão agora seguir o mesmo caminho, aumentando as suas capacidades ofensivas para se recuperarem.

Os Estados Unidos não são os únicos culpados. Nos últimos anos, a infraestrutura da internet de países como Uganda foi enriquecida por investimento direto chinês. Empréstimos pesados são distribuídos em troca de contratos africanos para as empresas chinesas construírem a infraestrutura de backbones de internet ligando escolas, ministérios do governo e comunidades no sistema global de fibra óptica.

A África está ficando online, mas com hardware fornecido por um aspirante a potência estrangeira. Será que vai ser a internet o meio pelo qual a África vai continuar subjulgada no século XXI? A África será novamente o espaço de confronto entre potências mundiais?

Essas são apenas algumas das formas importantes pelas quais a mensagem dos cypherpunks vai além da luta por liberdade individual. A criptografia pode proteger não somente as liberdades civis e direitos dos indivíduos, mas a soberania e independência de países inteiros, solidariedade entre grupos com causas comuns e projetos de emancipação global. Pode ser usada para lutar não apenas contra a tirania do estado sobre o indivíduo mas a tirania do império sobre estados menores.

Os cypherpunks ainda têm que fazer seu maior trabalho. Junte-se a nós.

downloadsubtitle: script para baixar legendas de filmes automaticamente no shell do GNU/Linux

Me acostumei a usar o legendas.tv para baixar legendas de filmes e acabei nunca me perguntando se haveria um jeito mais fácil de baixá-las. Hoje fui assistir um filme e, ao entrar no navegador para baixar sua legenda, me deparei com a mensagem de que o site estava fora do ar:

Mensagem do legendas.tv fora do ar.

A situação me obrigou a procurar outros sites e outras formas de baixar legendas. Minha primeira ideia foi usar o opensubtitles.org, que já havia usado algumas outras vezes. Chegando lá e procurando pelo filme que eu desejava, vi muitas opções e não estava muito claro que legenda baixar para a versão do filme que eu tinha.

Então resolvi dar uma fuçada na pesquisa avançada do site, onde acabei encontrando uma pesquisa por hash. Hash, em computação, é uma função que “resume” uma informação gigante (tipo um arquivo bem grande) numa informação bem pequena (tipo 16 caracteres) que o represente de forma única (ou quase única). A pesquisa por hash, no caso desse site, consiste em procurar uma legenda utilizando esse “ID” do arquivo (ou seja, não importa seu nome).

Achei a possibilidade tão legal que resolvi fazer um programa para nunca mais precisar abrir o navegador quando eu quiser baixar a legenda de um filme. Escrevi um minúsculo programa em C chamado oshash (de OpenSubtitles Hash) para calcular o hash de um filme de acordo com a especificação do site (que não requer nada, a não ser um compilador de C e a biblioteca padrão) e um script (bem tosco, mas funcional) chamado downloadsubtitle que usa o programa oshash (e pequenos programas que todo mundo tem, tipo grep, sed, wget e unzip) para baixar a legenda.

O funcionamento ficou bem fácil: para baixar uma legenda em qualquer língua, basta você digitar downloadsubtitle arquivo.avi para baixar a legenda do “arquivo.avi” (que já vai ser automaticamente nomeada como “arquivo.srt”). Se você quiser especificar uma língua (por exemplo, português do Brasil), é só digitar downloadsubtitle arquivo.avi pob (pob é o código do português do Brasil). Se você quiser baixar uma legenda em inglês ou espanhol, pode usar downloadsubtitle arquivo.avi eng,esp.

Exemplo de funcionamento

$ ls
Amelie [Amélie Poulain].2001.BRRip.x264.AAC[5.1]-VLiS.mkv
$ downloadsubtitle Amelie\ \[Amélie\ Poulain\].2001.BRRip.x264.AAC\[5.1\]-VLiS.mkv pob
Requested language: pob
Movie hash: bcdc90cf4873c09b
Subtitle ID: 4642726
Subtitle: Amelie [Amélie Poulain].2001.BRRip.x264.AAC[5.1]-VLiS.srt
$ ls
Amelie [Amélie Poulain].2001.BRRip.x264.AAC[5.1]-VLiS.mkv  Amelie [Amélie Poulain].2001.BRRip.x264.AAC[5.1]-VLiS.srt
$

E aí o filme está pronto para você assistir com o mplayer ou com o seu programa favorito.

Código

Este é o código inicial. Está aqui para fins históricos. Não será atualizado. Use a próxima seção (Download) para baixar a última versão, com bugs corrigidos, tratamento de erros e possivelmente novas funcionalidades.

#include <stdio.h>
#include <stdlib.h>

void usage(char *name) {
    printf("Usage: %s <file>\n", name);
    exit(1);
}

int main(int argc, char *argv[]) {
    unsigned long long buf[16384], c = 0;
    FILE *in;
    int i;
    if (argc != 2) {
        usage(argv[0]);
    }
    in = fopen(argv[1], "rb");
    if (in == NULL) {
        usage(argv[0]);
    }
    fread(buf, 8192, 8, in);
    fseek(in, -65536, SEEK_END);
    fread(&buf[8192], 8192, 8, in);
    for (i = 0; i < 16384; i++) {
        c+= buf[i];
    }
    c+= ftell(in);
    fclose(in);
    printf("%016llx\n", c);
    return 0;
}
#!/bin/bash

usage() {
    echo "Usage: $0 <file> [lang]"
    echo "Examples:"
    echo "$ $0 movie.avi pob         # brazilian portuguese"
    echo "$ $0 movie.avi por,pob     # any portuguese"
    echo "$ $0 movie.avi eng         # english"
    echo "$ $0 movie.avi all         # any language"
    exit
}

if [ $# -lt 1 ]; then
    usage
elif [ $# -gt 2 ]; then
    usage
fi

if [ $# = 2 ]; then
    lang=$2
else
    lang="any"
fi

echo "Requested language: $lang"
output=$(echo "$1" | sed 's/\.[^.]*$/.srt/')
oshash=$(oshash "$1")
echo "Movie hash: $oshash"
subid=$(wget "http://www.opensubtitles.org/en/search/sublanguageid-$lang/moviehash-$oshash/rss_2_00" -q -O - \
    | grep '<link />.*en/subtitles' | sed 's|.*en/subtitles/||; s|/.*||' | head -n1)
echo "Subtitle ID: $subid"
wget "http://www.opensubtitles.org/en/subtitleserve/sub/$subid" -q -O - | gunzip > "$output" 2> /dev/null
echo "Subtitle: $output"

Download

Criei um repositório no Github para colocar o código: github.com/tmadeira/downloadsubtitle

Para quem tem git, é possível baixar com git clone https://github.com/tmadeira/downloadsubtitle.git

Para quem não tem, dá pra baixar em ZIP daqui: github.com/tmadeira/downloadsubtitle/archive/master.zip

O programa ainda não está empacotado bonitinho (não tem nem Makefile ou instruções de instalação). Se futuramente vier a ter, este post será atualizado. Em resumo, basta compilar o código em C (digitando gcc oshash.c -o oshash) e colocar os arquivos oshash e downloadsubtitle numa pasta do seu $PATH (por exemplo, /usr/local/bin).

Sugestões e correções são bem-vindas.

E-books devem ampliar nossa liberdade, não reduzí-la

Li o texto “E-books must increase our freedom, not decrease it” (de Richard Stallman) no boletim da Free Software Foundation de julho/2012. É sobre os livros digitais e os dispositivos (como o Kindle, da Amazon) que estamos usando para lê-los. O texto foi escrito especialmente para o jornal britânico The Guardian, mas achei os problemas que o Stallman levanta bem relevantes e suas ideias para solucioná-los muito interessantes. Por isso, fiz uma tradução livre e descompromissada, que compartilho abaixo. Quem tiver sugestões para melhorar a tradução, por favor entre em contato.

Richard Stallman

Eu adoro o livro The Jehovah Contract e eu gostaria que todo mundo gostasse dele também. Por isso, eu o emprestei pelo menos seis vezes nos últimos anos. Livros impressos deixam a gente fazer isso.

Porém, eu não posso fazer isso com a maioria dos e-books comerciais. “Não é permitido”. E se eu tentar desobedecer, não vou conseguir porque o programa que roda nos e-readers possui recursos maliciosos chamados Digital Restrictions Management (ou DRM) para restringir minha leitura. Os e-books são encriptados de forma que apenas softwares maliciosos são capazes de abrí-los.

Muitos outros hábitos com os quais nós, leitores, estamos acostumados, “não são permitidos” para e-books. Usuários de Amazon Kindle, por exemplo, não podem comprar um livro anonimamente (com dinheiro). Os livros do Kindle normalmente estão disponíveis apenas pela Amazon e a Amazon faz com que os usuários se identifiquem. Logo, a Amazon sabe exatamente que livros cada usuário leu. Num país como o Reino Unido, onde você pode ser processado por possuir um livro proibido, isso é mais do que hipoteticamente orwelliano.

Além disso, você não pode vender o e-book depois de lê-lo (se a Amazon triunfar, os sebos onde eu passei muitas tardes serão história). E você não pode dá-lo para um amigo também, porque, de acordo com a Amazon, você nunca realmente foi dono dele em primeiro lugar. A Amazon requer que os seus usuários assinem um End User License Agreement (EULA) que diz isso.

Na verdade, você não pode nem mesmo ter certeza de que ele ainda estará na sua máquina amanhã. Há algum tempo atrás, pessoas lendo 1984 num Kindle tiveram uma experiência bem orwelliana: seus e-books desapareceram bem diante de seus olhos. A Amazon usou um recurso malicioso chamado “back door” para deletá-los remotamente (queima de livros virtual! É isso que Kindle significa?). Mas não se preocupe: a Amazon prometeu nunca mais fazer isso. Exceto por ordem do Estado.

Com software, ou o usuários controlam o programa (software livre) ou o programa controla o usuário (software não-livre). As políticas da Amazon para e-books imitam as políticas de distribuição de softwares não-livres, mas não é essa a única a relação entre os dois. Os recursos maliciosos dos softwares descritos acima são impostos aos usuários através de programas que não são livres. Se um programa livre tivesse um recurso malicioso como aqueles, algum usuário hábil em programação o removeria e então disponibilizaria uma versão corrigida para todos os outros usuários. Mas usuários não podem alterar software não-livre, o que o transforma num instrumento ideal para exercer o poder sobre o público.

Qualquer uma dessas usurpações da nossa liberdade é razão suficiente para dizer não. Se essas políticas se limitassem apenas à Amazon, nós as ignoraríamos. Porém, as políticas dos outros negociantes de e-books são bem parecidas.

O que me preocupa mais é o prospecto de perder a opção do livro impresso. O jornal The Guardian anunciou leituras apenas digitais: em outras palavras, livros disponíveis apenas pelo preço da liberdade. Eu não vou ler nenhum livro com esse preço. Daqui a cinco anos, serão cópias não-autorizadas as únicas cópias eticamente aceitáveis para a maioria dos livros?

Não precisa ser dessa forma. Com pagamento anônimo na internet, pagar por downloads de e-books sem DRM e sem EULA respeitaria nossa liberdade. Lojas físicas poderiam vender tais e-books por dinheiro, como a música digital em CDs — ainda disponíveis mesmo que a indústria da música esteja incentivando agressivamente serviços restritos com DRM como o Spotify. Lojas físicas de CDs enfrentam os custos de um inventório caro, mas lojas físicas de e-books poderiam apenas escrever cópias dos livros no seu pendrive. Aí o pendrive novo seria o único item físico a ser armazenado e vendido pela loja, para caso você precise.

O motivo que as editoras dão para suas práticas restritivas com e-books é a proibição aos usuários de compartilhar cópias. Eles dizem que isso é para benefício dos autores, mas mesmo que isso fosse de interesse dos autores (de autores bem famosos talvez), não pode justificar DRM, EULA ou o Digital Economy Act (DEA) que persegue leitores por compartilhar. Na prática, o sistema de copyright faz um péssimo trabalho no apoio aos autores a não ser os mais populares. O principal interesse de outros autores é ser mais conhecido, então compartilhar seu trabalho beneficiaria eles assim como os leitores. Por que não mudar para um sistema que funcione melhor e seja compatível com o compartilhamento?

Um imposto sobre conectividade à Internet, junto à linha geral da maioria dos países da União Europeia, poderia funcionar bem se três pontos forem acertados. O dinheiro deve ser coletado pelo Estado e distribuído de acordo com a lei, não dado para uma entidade de gestão privada; ele deve ser dividido entre todos os autores, e nós não devemos deixar as empresas pegarem nada deles; e a distribuição do dinheiro deve ser baseada numa escala móvel, não numa proporção linear à popularidade. Eu sugiro usar a raiz cúbica da popularidade de cada autor: se A é 8x mais popular que B, A recebe 2x o que B recebe (não 8x o que B recebe). Isso ajudaria muitos escritores razoavelmente populares adequadamente em vez de enriquecer poucas estrelas.

Outro sistema é dar a cada e-reader um botão para enviar uma pequena quantia (talvez 25 libras no Reino Unido) para o autor.

O compartilhamento é bom e, com tecnologia digital, o compartilhamento é fácil. (Digo, a redistribuição não-comercial de cópias exatas.) Então o compartilhamento tem que ser legal e evitar compartilhamentos não pode uma desculpa para transformar e-books em algemas para os leitores. Se e-books significam que a liberdade dos usuários precisa ou ser ampliada ou ser reduzida, nós precisamos exigir que ela seja ampliada.

A polêmica em torno do Marco Civil da Internet

O Marco Civil da Internet surgiu em oposição ao projeto de lei do então senador Eduardo Azeredo (PSDB/MG) conhecido como AI-5 Digital, que buscava vigiar e controlar o que nós fazemos na internet. O conteúdo original daquele projeto era bizarro, prevendo cadastro prévio e identificação de todos os usuários de internet, utilização dessa identificação para prender para quem baixa músicas online, censura de sites arbitrariamente sem aviso prévio e outros absurdos do tipo. Algo muito parecido com a lei SOPA nos EUA.

Charge do Latuff sobre violação de direitos autorais

A proposta do Marco Civil foi a de criar uma lei no sentido contrário. Em vez de criar uma legislação para punir simples usuários da rede, vários ativistas do software livre e da internet livre se organizaram para escrever (mediando com governo e empresas) uma “constituição” para a internet, que respeitasse a liberdade de expressão e garantisse direitos jurídicos para os seus usuários.

Seria um erro ser contra (por princípio) toda e qualquer legislação que verse sobre a internet. A internet é uma rede grande e descentralizada. Nós, usuários comuns, somos pontinhas nessa rede (folhas) conectados ao mundo por poucas empresas de telecomunicações (provedores), que possuem poder para fazerem o que quiserem com a nossa comunicação com essa grande rede.

Nesse diagrama, um ISP é o seu provedor e você nem aparece, mas é uma pequena folha ligada apenas a ele.

Os provedores de internet no mundo inteiro se aproveitam de seu poder para ganharem dinheiro. Isso se faz de várias formas, desde vendendo uma alta velocidade de internet e entregando apenas 20% dela (é essa a norma da Anatel pra banda larga!), até priorizando determinados tipos de comunicação.

Açougue inspirado pela Anatel

Os exemplos dessa priorização são variados e, embora a gente às vezes não perceba, acontecem no mundo inteiro: de operadoras de celular que bloqueiam (ou limitam) comunicação através do protocolo UDP para impedir que seus usuários usem VoIP via 3G em vez de pagarem por ligações (conheci vários casos trabalhando com VoIP móvel no imo) até provedores que diminuem a velocidade de torrents ou jogos online. Isso pra não falar de denúncias sobre sites que abrem muito mais rápido do que outros (vamos supôr que você é o dono da Telefônica e o Google é seu parceiro — aí você pode dar uma forcinha pra o Google ser melhor que seu concorrente Yahoo fazendo o Yahoo demorar mais pra abrir para os seus usuários).

Por isso, regulamentações que garantam o princípio da neutralidade na rede (isso é, segundo a Wikipedia, o princípio de que todas as informações que trafegam na rede devem ser tratadas da mesma forma, navegando a mesma velocidade) são muito importantes.

Nesse sentido, é motivo para comemorarmos que, com o Marco Civil, o Brasil tenha a chance de ser pioneiro na criação de uma lei que garanta neutralidade na rede. Não é exagerado dizer que essa possibilidade impressiona ciberativistas do mundo inteiro.

Porém, o lobby (das empresas de telecomunicações, as mesmas para as quais o governo já cedeu com um Plano Nacional de Banda Larga que vai garantir seus lucros sem levar internet de qualidade para mais lugares do país) e a falta de compromisso do governo com as pautas que dizem respeito à democratização das comunicações e à internet (falta de compromisso que tirou de Brasília um cara como o Sérgio Amadeu no final de 2005 e congelou as políticas pró-software livre desde lá), está ameaçando o texto do projeto a dois retrocessos inaceitáveis.

O primeiro diz respeito justamente à neutralidade. O texto atual do projeto prevê exceções a esse princípio. Essas exceções seriam regulamentadas por ninguém mais ninguém menos que a Anatel, entidade que representa os interesses do oligopólio das telecomunicações no Brasil.

Já o segundo foi um dos pontos mais polêmicos dos projetos SOPA, PIPA e Azeredo. O texto atual do Marco Civil determina que sites e provedores sejam obrigados a tirar do ar conteúdos quando há uma simples denúncia, antes mesmo dessa denúncia ser julgada. Na prática, alguém poderia denunciar meu site por infringir algum direito autoral e, antes mesmo de eu me defender, meu servidor seria obrigado a tirar meu site do ar. Um precedente terrível de censura.

Sem consenso sobre esses pontos (ainda bem), a votação do Marco Civil já foi adiada cinco vezes. Na última terça (13), foi adiada para a próxima terça (20). Fiquemos atentos, porque o texto que será votado e o resultado dessa regulamentação podem ter consequências muito importantes, para o bem ou para o mal, para a internet. De fato, o futuro da internet como a conhecemos hoje dependerá muito (embora não só) das decisões sobre neutralidade na rede que forem tomadas em legislações pelo mundo inteiro.

© 2005–2020 Tiago Madeira